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Prestígio do público a ator surdo japonês no Festival de Veneza é sinal dos tempos

- 1 de dezembro de 2022

O 79º Festival Internacional de Cinema de Veneza terminou em 10 de setembro. Na lista de finalistas para o cobiçado prêmio Leão de Ouro estava o filme japonês “Love Life”, do diretor emergente Fukada Koji. A história explora o significado do amor através da vida da heroína, do seu marido, do seu filho do casamento anterior e do seu ex-marido, que é surdo. O próprio ator que interpreta o ex-marido é deficiente auditivo. Nesta entrevista exclusiva, Sunada Atom fala à NHK sobre a importância de ter desempenhado o papel.

Um filme que trata dos surdos como pessoas comuns

O filme começa com a protagonista vivendo feliz com sua família. Uma tragédia, porém, a leva a se reconciliar com o ex-marido. A trama assume rumos inesperados à medida que a heroína reflete sobre a própria vida.

– Qual seria o ponto alto de “Love Life”?

Sunada: O triângulo amoroso entre Taeko, Jiro e Park. A maneira como a dinâmica se desenrola é intrigante. Meu personagem é o deficiente auditivo Park, que é meio coreano, meio japonês. O final reserva diversas surpresas!

O que difere este filme de muitas películas do passado é o fato de a obra tratar dos deficientes auditivos como quaisquer outras pessoas. Park é apenas um dos personagens e leva uma vida comum. Tenho esperança de que o filme mude a perspectiva do público a respeito do cinema, de que as plateias vejam o personagem surdo simplesmente do modo como ele é retratado. Muitos de nós esperamos que os filmes abordem os personagens surdos de um ponto de vista particularmente simpático — algo inexistente nesta obra.

– Personagens surdos aparecem em vários filmes que tratam de temas como deficiência ou bem-estar social, mas esta é uma história de amor em que uma pessoa surda surge simplesmente ao acaso. O que achou disso?

Sunada: Se “Love Life” buscasse despertar simpatia ou pena, eu não teria aceitado o papel. Mas, ao ler o roteiro, não vi nenhum indício disso. As pessoas que podem ouvir e as que não podem são representadas igualmente de maneira normal. Não há tratamento diferenciado em razão de alguma deficiência. As coisas do cotidiano são descritas exatamente como são. Claro, habilitado a ouvir, o diretor não estava particularmente familiarizado com a cultura dos surdos ou a maneira como vivem os deficientes auditivos. Nós dois conversamos muito e ele conseguiu incorporar uma maior conscientização ao roteiro.

– O diretor usou em alguma cena a sua percepção da realidade como surdo?

Sunada: Sim. Por exemplo, quando as pessoas falam adormecidas. O diretor me perguntou se os surdos fazem o mesmo. Eu disse que também conversamos no sono, em linguagem de sinais. Sabe-se, além disso, que pessoas capazes de ouvir tendem a falar mais alto quando estão afastadas entre si. E quanto aos surdos? Claro, fazemos o mesmo. Eu disse a ele que usamos gestos menores quando falamos com alguém próximo e gestos maiores com alguém distante.

O mais importante é o contato visual. Normalmente, pessoas com dificuldades auditivas que falam em linguagem gestual precisam se encarar e fazer contato visual recíproco. O diretor perguntou o que fazemos quando estamos sentados lado a lado. Eu lhe disse que espelhos podem ser úteis. Costumamos usá-los em tais situações. Ele usou essas dicas no enredo.

– Pode-se dizer que um dos elementos centrais do filme é o comportamento de “olhar nos olhos um do outro ao conversar”. Há o contraste entre o casal que não faz isso e o casal que se obriga a adotar o comportamento pelo uso da linguagem de sinais.

Sunada: Sim, é natural que os surdos façam contato visual recíproco ao conversar. É muito importante. Quando vamos às compras e o pessoal da loja não nos entende, precisamos nos comunicar por escrito. Mas, se eles não fizerem contato visual, será muito frustrante. Evitar o contato visual é um aspecto da cultura auditiva. Muitas pessoas procuram não se fitar nos olhos. Ao mesmo tempo, há muitos casais surdos-ouvintes. Eles sentem que o contato visual é crucial na vida cotidiana. Eu ficaria feliz se as pessoas aprendessem aspectos da cultura dos surdos como este.

– Em sua longa carreira, você se esforçou para melhorar a própria atuação na linguagem de sinais. O que o fez optar pela carreira de ator?

Sunada: Sempre gostei de me apresentar em palcos. Meus pais também eram surdos e conversávamos em linguagem de sinais o tempo todo. Meu pai é cristão e costumava celebrar o culto de domingo para surdos. Eu o via como alguém legal e inteligente quando estava no púlpito, falando em linguagem de sinais. Foi nessa época que comecei a sonhar em atuar com a linguagem de sinais.

E, quando tinha 15 anos, eu vi um vídeo em que uma pessoa falava em um estilo fascinante de linguagem de sinais. Fiquei surpreso ao saber que a pessoa também era surda. Percebi que os surdos podem atuar e pensei que talvez eu pudesse realmente me tornar um ator. Foi quando levei adiante a ideia de seguir a carreira. Estudei várias formas de expressão. Na escola, eu mostrava a linguagem de sinais para os amigos e adquiria maior confiança sempre que os fazia sorrir. Depois de concluir a escola, me mudei para Tóquio e me matriculei em um curso para estudar atuação em linguagem de sinais. Conforme ganhei experiência, comecei a me apresentar no palco.

O prêmio máximo em Veneza foi atribuído ao documentário americano “All the Beauty and the Bloodshed”. Mas, embora “Love Life” não tenha sido premiado, a atuação de Sunada e o filme receberam elogios. Um italiano na plateia disse: “É interessante refletir sobre o que é a verdadeira comunicação, algo realmente presente neste filme. A obra nos dá uma visão pura da comunicação, pois muitas vezes as palavras não conseguem transmitir tudo o que há para dizer, como no caso de uma paquera não correspondida.”

Um espectador da Alemanha disse: “O filme realmente toca o coração. Pode parecer um melodrama, com todas as reviravoltas resultantes, mas o que a obra retrata é muito verdadeiro.”

– Mesmo os atores surdos precisam ensaiar as falas. Minha impressão é de que seus sinais transmitem bem os sentimentos do personagem e parecem atraentes.

Sunada: Ensaiamos, é claro. Por exemplo, pessoas com capacidade auditiva podem gostar de ouvir músicas, mas nem todas podem cantar uma ópera. Os cantores recebem treinamento especial e somente quando sua habilidade é reconhecida eles podem subir no palco e se apresentar. Com a linguagem de sinais acontece o mesmo. Não basta ser capaz de se comunicar por sinais. Os atores precisam envolver o público com sua linguagem. Venho praticando maneiras de atrair o público há mais de 30 anos, mas ainda me considero um iniciante.

Ator surdo interpreta personagem com deficiência auditiva

– No passado, não era incomum que atores com capacidade auditiva interpretassem papéis de surdos. Qual é a sua opinião a respeito?

Sunada: É uma pergunta difícil. Por exemplo, às vezes interpreto um personagem mais velho do que eu. O importante nesse filme é que o personagem usa a linguagem de sinais como meio de comunicação. Isso não pode ser feito por qualquer um. É fundamental que o papel seja desempenhado por um ator surdo.

Atores com capacidade auditiva podem atuar com expressões convincentes por meio de treinamento, mas há um limite. Eles têm de entender a cultura dos surdos. A linguagem de sinais não é apenas a gesticulação com as mãos. É preciso gesticular com as sobrancelhas ou usar expressões faciais da maneira certa para tornar gramaticalmente correto o que se está dizendo. Sem saber todas essas coisas, não é possível se expressar naturalmente na linguagem de sinais. Não é qualquer um que pode fazer isso. Me causa incômodo a ideia de que pessoas com audição normal desempenhem papéis de surdos.

Ao falar, Sunada usou uma enfática linguagem de sinais para ressaltar a convicção de que papéis de surdos precisam ser desempenhados por atores surdos.

O diretor Fukada Koji, integrante de um grupo que promove a diversidade no cinema, também abordou o assunto. Ele diz que os cineastas são parcialmente culpados pela escassez de atores surdos para a representação de personagens surdos.

Fukada: Quando há um personagem surdo, o cinema tende a retratá-lo como alguém emaranhado em problemas sociais ou é feita a tentativa de conectar o enredo com questões de discriminação ou bem-estar. Não digo que isso seja errado, mas, se atores surdos forem sempre escolhidos para desempenhar tais personagens, seus papéis permanecerão limitados. Por exemplo, ninguém questiona se um determinado personagem tem audição normal, mas, se o personagem for surdo, as pessoas perguntarão por quê. Elas esperam que a história apresente uma razão para isso. É algo um tanto injusto.

Se eu escolhesse um ator com audição normal para o papel de um personagem surdo, o filme provavelmente teria sido visto como um precedente para não dar preferência a atores surdos para papéis de surdos. Em entrevistas, eu teria que convencer o público das razões de um ator com audição normal ser capaz de interpretar um personagem surdo. Teria que justificar a minha decisão — caso contrário, estaria sendo rude com o ator. Acho que esse tipo de justificativa é comum no cinema. É por isso que, em muitos casos, atores que possuem atributos específicos para desempenhar determinados papéis não são escolhidos.

Atores surdos não recebem muitas oportunidades. A desigualdade está arraigada. A primeira coisa que precisamos fazer é eliminar esse problema. Convém relegar para depois o debate, no universo de atuação ou artes cênicas, de que pessoas com capacidade auditiva deveriam ser capazes de desempenhar papéis de surdos, já que “qualquer um pode se tornar um ator”. Somente quando atores surdos se tornarem parte normal das artes cênicas é que poderemos discutir essas questões.

Sunada Atom como modelo

– Você faz postagens com ensinamentos da linguagem de sinais em um site de streaming de vídeo. Que mensagem pretende passar para atores surdos mais jovens?

Sunada: Espero que a linguagem de sinais se espalhe como meio de expressão. É extremamente raro que atores surdos sejam chamados para audições. Ainda é pequeno o número de atores surdos. Para que eles possam competir em pé de igualdade com colegas não deficientes, temos que capacitar um número maior de jovens atores surdos. Espero poder inspirar e encorajar muitos atores surdos a buscar a realização de suas aspirações, sonhos e interesses, ainda que não me convenha deixar jovens concorrentes me superar.

– É um filme que pode oferecer a muitas pessoas a oportunidade de aprender algo sobre pessoas surdas…

Sunada: Sim, acho ótimo que quem não tenha tido contato com a linguagem de sinais ou com deficiência auditiva possa aprender algo sobre os surdos por meio do filme. Quando me comunico em linguagem de sinais, as pessoas me encaram, não porque eu seja famoso, mas porque pareço esquisito. Não são diferentes de ninguém as pessoas surdas que usam a linguagem de sinais, os deficientes visuais, os indivíduos em cadeiras de rodas. Espero que o público os veja naturalmente como parte da sua vida, em vez de percebê-los como pessoas estranhas.

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